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Conforme recentes
estimativas, cerca de trinta milhões de pessoas no mundo são vítimas de tráfico
humano. Trata-se de homens, mulheres, crianças e adolescentes submetidos a
trabalho forçado, exploração sexual, adoção ilegal, remoção de órgãos ou outra
forma de atividade compulsória (por exemplo, mendicância ou matrimônio
forçado). Esses seres humanos são tratados como objetos, reduzidos a mera
mercadoria ou instrumentos de produção, encobrindo assim sua subjetividade,
seus diretos e sua dignidade de ser humano.
O tráfico humano não
é uma peculiaridade da época contemporânea. A história do Brasil e da
humanidade nos ensina que sempre houve pessoas traficadas ou escravizadas. No
entanto, se no passado a legitimação da escravidão estava relacionada com
fatores bélicos (prisioneiros de guerra), étnicos, raciais, sexistas ou
econômicos (escravos por dívida), na atualidade, após a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH) da ONU ("Todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos”, "Ninguém será mantido em escravidão ou
servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas
formas”), como justificar a comercialização de seres humanos?
A difusão do Tráfico
de Pessoas no contexto contemporâneo revela, em primeiro lugar, que os
princípios da DUDH ficaram no papel e ainda não foram assimilados pelas sociedades
contemporâneas. Muito pelo contrário, a recente globalização de cunho
neoliberal, apesar das declarações oficiais sobre direitos humanos, sustenta e
promove, de forma direta ou indireta, uma generalizada hegemonia do mercado
enquanto critério valorativo e avaliativo do ser humano e de sua dignidade.
Nesta perspectiva - como insiste reiteradamente ZygmuntBauman (2008) - a pessoa
é avaliada a partir de sua capacidade de consumir ou, de forma mais ampla, de
se inserir nas dinâmicas do mercado. Isso traz duas importantes consequências:
a dignidade não é algo relacionado com o nascimento, conforme a DUDH, mas é
algo a ser alcançado ou aprimorado mediante a inserção nas lógicas do mercado;
quem não é consumidor ou produtor, torna-se mera mercadoria ou, então, massa
sobrante.
Embora qualquer
pessoa possa ser vítima de tráfico para fins de exploração sexual, remoção de
órgãos ou trabalho escravo, não há dúvida de que na maioria dos casos as
vítimas fazem parte dessa assim chamada "massa sobrante” de pessoas. Trata-se
de homens e mulheres que buscam desesperadamente garantir a própria
sobrevivência biológica e social e que, por engano ou necessidade, acabam
envolvidos em redes de tráfico.
Nesse grupo devemos
incluir também milhões de seres humanos que trilham os caminhos da migração
como fonte de esperança e emancipação. No entanto, as recentes e generalizadas
restrições das políticas imigratórias os obrigam, com frequência, a recorrer ao
auxílio de atravessadores que, às vezes, não se limitam a facilitar o ingresso
nas terras de destino, mas recrutam os migrantes para redes de tráfico de
pessoas. Assim, o sonho da migração se transforma em pesadelo.
Resumindo, na
sociedade contemporânea, o tráfico de pessoas se configura como ponta de
iceberg de uma realidade social em que as relações humanas são viciadas e
manipuladas pela lógica do mercado, sendo a dignidade do ser humano
quantificada a partir de seu valor de uso e de troca. A comercialização de
seres humanos constitui o caso mais grave de um processo de coisificação (ou
reificação) inerente à lógica do capitalismo contemporâneo, que tende
fisiologicamente a mercantilizar o sujeito, derrubando, assim, a conhecida
distinção kantiana entre "o que tem preço” (as coisas) e "o que tem
dignidade” (os seres humanos). No fundo, não se pode estranhar, como sugere
Michelle Becka, se "numa sociedade onde a reificação é cotidiana, se
favoreçam formas extremas de reificação – como o comércio de mulheres” (2011,
p. 83).
Assim sendo, o
enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, além dos tradicionais eixos da prevenção,
repressão e atendimento às vítimas, deve incluir também: a luta contra todo
tipo de coisificação/reificação do ser humano, que nada é mais do que o
respeito pelos princípios básicos da DUDH. Tal luta deve abranger qualquer
âmbito da vida social e não apenas os casos específicos e mais graves de
tráfico de pessoas. Em outros termos, há necessidade de uma "cultura”
alternativa à lógica reificante e consumista do capitalismo neoliberal.
Em segundo lugar,
levando em conta que a maioria das pessoas traficadas é composta por migrantes
ou indivíduos que almejam emigrar, o enfrentamento ao tráfico passa por
políticas migratórias menos restritivas, que permitam aos emigrantes evitar o
recurso a atravessadores. Fica bastante incongruente a política de determinados
países que denunciam publicamente o tráfico de pessoas e, ao mesmo tempo,
militarizam as próprias fronteiras.
Finalmente, a luta
contra o tráfico é, também, senão principalmente, a luta pela justiça social:
as situações de vulnerabilidade social das vítimas acabam sempre facilitando a
ação dos recrutadores. Qualquer pessoa em situação desesperada tende a tolerar
condições de trabalho indignas ou aceitar propostas arriscadas de emprego. O
enfrentamento ao tráfico, portanto, deve ser interpretado e planejado no
interior de um compromisso mais amplo por uma sociedade mais justa,
participativa, solidária e igualitária. Não há outra opção, a não ser a
barbárie.
[Por Roberto
Marinucci é membro do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios]
Referências
Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt
(2008). Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadoria. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed.
BECKA, Michelle
(2011). Comércio de mulheres e reificação, em: Concilium, n. 341 (2011/3), p.
83.
DIAS, Guilherme
Mansur e SPRANDEL, Márcia Anita (2011). Reflexões sobre políticas sobre
migrações e tráfico de pessoas no Brasil. In: REMHU, Rev. Interdiscipl. Mobil.
Hum., ano XIX, n. 37, jul./dez., p. 59-77.
Roberto Marinucci
Pesquisdor
do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios – CSEM
Disponível
em: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=81254
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