A pedido de Zero
Hora, cientista política escreveu artigo opinativo sobre a ofensa de Bolsonaro
a deputada
Por Telia Negrão*
Em dezembro de 1993, durante
a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, as Nações Unidas
adotaram uma declaração segundo a qual os direitos das mulheres e das meninas
são direitos humanos. Acrescenta que a violência baseada no gênero, não
importando a forma como se apresenta, é uma violação desses direitos, portanto
passível de condenação por todos os estados-parte.
Embora para as mulheres não
haja dúvida quanto ao seu pertencimento à humanidade, os tratamentos
degradantes dados ao sexo feminino ao longo da história colocam em jogo sua
dignidade. O Brasil como signatário dessa declaração, que segue anexada à
Declaração Universal dos Direitos Humanos, obriga-se a cumpri-la, e sua
política nacional é pautada pelos seus fundamentos.
Por óbvio que obter um
consenso mundial de que os direitos humanos das mulheres e das crianças do sexo
feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos
humanos universais, resultou de imensas lutas em todo o planeta. Sob a consigna
de que "sem as mulheres os direitos não são humanos” organizações e
movimentos feministas, inclusive brasileiros, arrancaram por assim dizer, das
Nações Unidas, palavras que afirmassem ser a participação plena das mulheres,
em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e
cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação
de todas as formas de discriminação com base no sexo/gênero, condições de
humanidade.
Segundo a Declaração de
Viena, a violência baseada no sexo da pessoa e todas as formas de assédio e
exploração sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais e do
tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa
humana e devem ser eliminadas. E afirma "isto pode ser alcançado através
de medidas de caráter legislativo e da ação nacional e cooperação internacional
em áreas tais como o desenvolvimento sócio econômico, a educação, a maternidade
segura e os cuidados de saúde, e a assistência social”.
Apesar de sua existência,
todos os dias olhamos para o apedrejamento de mulheres pelos talibãs, as balas
direcionadas para meninas como Malala, nos indignamos com as violências
cotidianas. Mas não se espera de uma instância máxima da democracia em nosso
país uma violência tão grave quanto a que está sendo vítima uma lutadora pelos
direitos humanos, com mandato parlamentar, por outro deputado. E
reiteradamente.
São conhecidas as atitudes e
a virulência desse parlamentar, de origem militar, contra todo o projeto que
busca resgatar os fatos reais sobre a ditadura em nosso país. Ele tentou
obstruir os trabalhos da Comissão da Verdade, desqualificando a ação da
sociedade e do Estado, defendendo e protegendo torturadores.
Demonstra também sua
afiliação ao conservadorismo extremo, que se nega a reconhecer a existência
homossexuais, negros, mulheres, todos vistos como vagabundos, gente sem valor.
Seu pertencimento às ideologias identificadas com o breviário fascista o
aproxima a grupos nazistas, homofóbicos, batedores e estupradores de mulheres.
Infelizmente, faz eco em parcela da sociedade que assim se posiciona. Aqui no
Rio Grande do Sul também se elegeu um representante desse campo de ideias, e
havia um tempo em que acreditávamos que a vedação constitucional de promoção de
ideologia que viola os direitos humanos poderia impedir esses acontecimentos.
Mas por que Bolsonaro, esse
é o nome de alguém tão inacreditavelmente pustulento em suas ideias, além de
agredir Maria do Rosário, esse é o nome da deputada que defende os direitos
humanos, a agride como mulher? Por que a desqualifica como tal? Por que a
ameaça de estupro, dizendo-lhe, com outras palavras, "se quisesse a
estupraria mas não o faço porque não merece”?
Lembrei-me de imediato de
Silvia Pimentel, brasileira que integra o Comitê das Nações Unidas para a
Mulher – Cedaw, autora de uma obra jurídica baseada em decisões judiciais sobre
violência sexual no Brasil. O livro Estupro, crime ou cortesia, analisa a tese
de um juiz do interior de São Paulo que absolve um estuprador sob a alegação de
que, em sendo tão destituída de beleza, a violência sexual contra uma mulher
não passa de uma cortesia!
Essa sentença que nos produz
mal estar ao lê-la, não está distante do que afirmou Bolsonaro e vem motivando
as campanhas de que "nenhuma mulher merece ser estuprada”. O corpo das
mulheres é um território sagrado, como de todos os humanos, portanto, é
inviolável, não é objeto, não é mercadoria, não é carne exposta ao consumo e
que se escolhe de acordo com o aspecto.
A tese, de que as mulheres
provocam o estupro por seus modos, suas roupas e disponibilidade seriam o aval
da violação sexual, de alta legitimidade social, também nada mais é do que uma
violação aos direitos humanos.
Bolsonaro, ao ameaçar e
desdenhar de uma forte e linda mulher como a ex-ministra, tenta atingi-la
naquilo que mais nos identifica como humanas e humanos, a nossa dignidade.
Afetando-a e destruindo-a, abre o caminho para a derrota das ideias de
democracia, de cidadania, de igualdade, de respeito, de tolerância, bases da
convivência humana. Reafirma elementos da mais rude cultura patriarcal, que
percebe as mulheres como pessoas de tão pouco valor na hierarquia social, a
ponto de serem o mais simples objeto sexual. Ao colocar-se em tal posição, não
percebe esse deputado que ele próprio se destitui da condição humana.
O que não se pode entender é
como Bolsonaro, seus amigos no Congresso e seguidores em assembleias
legislativas e câmaras de vereadores como vimos há poucos dias em Sergipe,
continuam impunes para o todo e sempre. Violam por palavras e ameaças de
estupro os fundamentos de nosso país e de nosso Estado.
A impunidade, nós sabemos,
tem sido a maior inimiga das mulheres ao longo dos séculos. No Brasil se abusa
da lei, mesmo daquela entre as dez mais conhecidas, a Maria da Penha. Muitos
homens conhecem, muitos a odeiam e dela desdenham, seguindo-se o rumo de uma
violência a cada 25 segundos.
Ameaça, calúnia, difamação,
desqualificação, humilhação pela condição feminina, constituem violências de
gênero explicitamente descritas na Lei Maria da Penha e também na Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Eliminar a Violência Contra as Mulheres e
na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher –
Cedaw. Como pode esse parlamentar desconsiderar esses mecanismos legais,
ultrapassar a linha vermelha do respeito à dignidade humana? Para que servem a
Constituição e os regramentos do decoro parlamentar?
Com base em todos esses
fundamentos, integro uma parcela da sociedade que não admite convivência com
fascistas, pois seus métodos impossibilitam a defesa de diferentes concepções
de mundo. Estes que promovem matança de gays, que estimulam os estupros
corretivos de lésbicas, que ajudam a matar a juventude negra, que odeiam
nordestinos, e se pudessem transformavam as mulheres em seres desprezíveis, de
acordo com a formulação que elaboram dessa metade da humanidade.
Maria do Rosário dispensou a
solidariedade, exausta de tão atacada. Mas exige justiça e reparação. Para nós,
justiça é a cassação do mandato de um deputado que ameaça de estupro, mas
dispensa a vítima. É responder na justiça por violação aos direitos humanos.
Reparação é a sociedade unir-se na defesa dos direitos humanos das mulheres,
mantendo o desejo de justiça.
* Cientista politica e
jornalista, Telia Negrão coordena o Projeto de Monitoramento da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher (CEDAW) da
Organização das Nações Unidas (ONU) e a ONG Coletivo Feminino Plural. Também é
pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e
Gênero (NIEM) da UFRGS.
Fonte: Zero Hora
Disponível em www.adital.com.br
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