terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Por que se ataca a mulher Maria do Rosário?


A  pedido de Zero Hora, cientista política escreveu artigo opinativo sobre a ofensa de Bolsonaro a deputada

Por Telia Negrão*


Em dezembro de 1993, durante a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, as Nações Unidas adotaram uma declaração segundo a qual os direitos das mulheres e das meninas são direitos humanos. Acrescenta que a violência baseada no gênero, não importando a forma como se apresenta, é uma violação desses direitos, portanto passível de condenação por todos os estados-parte.

Embora para as mulheres não haja dúvida quanto ao seu pertencimento à humanidade, os tratamentos degradantes dados ao sexo feminino ao longo da história colocam em jogo sua dignidade. O Brasil como signatário dessa declaração, que segue anexada à Declaração Universal dos Direitos Humanos, obriga-se a cumpri-la, e sua política nacional é pautada pelos seus fundamentos.

Por óbvio que obter um consenso mundial de que os direitos humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais, resultou de imensas lutas em todo o planeta. Sob a consigna de que "sem as mulheres os direitos não são humanos” organizações e movimentos feministas, inclusive brasileiros, arrancaram por assim dizer, das Nações Unidas, palavras que afirmassem ser a participação plena das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo/gênero, condições de humanidade.

Segundo a Declaração de Viena, a violência baseada no sexo da pessoa e todas as formas de assédio e exploração sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais e do tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. E afirma "isto pode ser alcançado através de medidas de caráter legislativo e da ação nacional e cooperação internacional em áreas tais como o desenvolvimento sócio econômico, a educação, a maternidade segura e os cuidados de saúde, e a assistência social”.

Apesar de sua existência, todos os dias olhamos para o apedrejamento de mulheres pelos talibãs, as balas direcionadas para meninas como Malala, nos indignamos com as violências cotidianas. Mas não se espera de uma instância máxima da democracia em nosso país uma violência tão grave quanto a que está sendo vítima uma lutadora pelos direitos humanos, com mandato parlamentar, por outro deputado. E reiteradamente.
São conhecidas as atitudes e a virulência desse parlamentar, de origem militar, contra todo o projeto que busca resgatar os fatos reais sobre a ditadura em nosso país. Ele tentou obstruir os trabalhos da Comissão da Verdade, desqualificando a ação da sociedade e do Estado, defendendo e protegendo torturadores.

Demonstra também sua afiliação ao conservadorismo extremo, que se nega a reconhecer a existência homossexuais, negros, mulheres, todos vistos como vagabundos, gente sem valor. Seu pertencimento às ideologias identificadas com o breviário fascista o aproxima a grupos nazistas, homofóbicos, batedores e estupradores de mulheres. Infelizmente, faz eco em parcela da sociedade que assim se posiciona. Aqui no Rio Grande do Sul também se elegeu um representante desse campo de ideias, e havia um tempo em que acreditávamos que a vedação constitucional de promoção de ideologia que viola os direitos humanos poderia impedir esses acontecimentos.

Mas por que Bolsonaro, esse é o nome de alguém tão inacreditavelmente pustulento em suas ideias, além de agredir Maria do Rosário, esse é o nome da deputada que defende os direitos humanos, a agride como mulher? Por que a desqualifica como tal? Por que a ameaça de estupro, dizendo-lhe, com outras palavras, "se quisesse a estupraria mas não o faço porque não merece”?
Lembrei-me de imediato de Silvia Pimentel, brasileira que integra o Comitê das Nações Unidas para a Mulher – Cedaw, autora de uma obra jurídica baseada em decisões judiciais sobre violência sexual no Brasil. O livro Estupro, crime ou cortesia, analisa a tese de um juiz do interior de São Paulo que absolve um estuprador sob a alegação de que, em sendo tão destituída de beleza, a violência sexual contra uma mulher não passa de uma cortesia!

Essa sentença que nos produz mal estar ao lê-la, não está distante do que afirmou Bolsonaro e vem motivando as campanhas de que "nenhuma mulher merece ser estuprada”. O corpo das mulheres é um território sagrado, como de todos os humanos, portanto, é inviolável, não é objeto, não é mercadoria, não é carne exposta ao consumo e que se escolhe de acordo com o aspecto.

A tese, de que as mulheres provocam o estupro por seus modos, suas roupas e disponibilidade seriam o aval da violação sexual, de alta legitimidade social, também nada mais é do que uma violação aos direitos humanos.
Bolsonaro, ao ameaçar e desdenhar de uma forte e linda mulher como a ex-ministra, tenta atingi-la naquilo que mais nos identifica como humanas e humanos, a nossa dignidade. Afetando-a e destruindo-a, abre o caminho para a derrota das ideias de democracia, de cidadania, de igualdade, de respeito, de tolerância, bases da convivência humana. Reafirma elementos da mais rude cultura patriarcal, que percebe as mulheres como pessoas de tão pouco valor na hierarquia social, a ponto de serem o mais simples objeto sexual. Ao colocar-se em tal posição, não percebe esse deputado que ele próprio se destitui da condição humana.

O que não se pode entender é como Bolsonaro, seus amigos no Congresso e seguidores em assembleias legislativas e câmaras de vereadores como vimos há poucos dias em Sergipe, continuam impunes para o todo e sempre. Violam por palavras e ameaças de estupro os fundamentos de nosso país e de nosso Estado.
A impunidade, nós sabemos, tem sido a maior inimiga das mulheres ao longo dos séculos. No Brasil se abusa da lei, mesmo daquela entre as dez mais conhecidas, a Maria da Penha. Muitos homens conhecem, muitos a odeiam e dela desdenham, seguindo-se o rumo de uma violência a cada 25 segundos.

Ameaça, calúnia, difamação, desqualificação, humilhação pela condição feminina, constituem violências de gênero explicitamente descritas na Lei Maria da Penha e também na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Eliminar a Violência Contra as Mulheres e na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher – Cedaw. Como pode esse parlamentar desconsiderar esses mecanismos legais, ultrapassar a linha vermelha do respeito à dignidade humana? Para que servem a Constituição e os regramentos do decoro parlamentar?

Com base em todos esses fundamentos, integro uma parcela da sociedade que não admite convivência com fascistas, pois seus métodos impossibilitam a defesa de diferentes concepções de mundo. Estes que promovem matança de gays, que estimulam os estupros corretivos de lésbicas, que ajudam a matar a juventude negra, que odeiam nordestinos, e se pudessem transformavam as mulheres em seres desprezíveis, de acordo com a formulação que elaboram dessa metade da humanidade.

Maria do Rosário dispensou a solidariedade, exausta de tão atacada. Mas exige justiça e reparação. Para nós, justiça é a cassação do mandato de um deputado que ameaça de estupro, mas dispensa a vítima. É responder na justiça por violação aos direitos humanos. Reparação é a sociedade unir-se na defesa dos direitos humanos das mulheres, mantendo o desejo de justiça.

* Cientista politica e jornalista, Telia Negrão coordena o Projeto de Monitoramento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher (CEDAW) da Organização das Nações Unidas (ONU) e a ONG Coletivo Feminino Plural. Também é pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM) da UFRGS.


Fonte: Zero Hora

Disponível em www.adital.com.br 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Violência de gênero afeta saúde reprodutiva das mulheres.

Adital

As gravidezes não desejadas, infecções por transmissão sexual e os abortos espontâneos são mais frequentes nas mulheres que informam terem sido vítimas de violência em algum momento de suas vidas. Ante essa realidade, a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPS/OMS) difundiu um comunicado instando o setor da saúde — especialmente, os serviços de saúde sexual e reprodutiva — a envolver-se nas atividades dirigidas a prevenir e responder a violência contra a mulher.
"Esse é um problema de grande magnitude, com muitas implicações para a saúde”, afirma a doutora Carissa F. Etienne, diretora da OPS/OMS. "O setor da saúde tem um papel tanto na prevenção como na resposta”, assinalou e acrescentou que, para abordá-lo, também é necessário o envolvimento de outros setores. 
A violência contra a mulher continua sendo um grave problema de saúde pública nas Américas, onde uma de cada três mulheres experimenta durante a sua vida violência física ou sexual por parte do seu companheiro ou violência sexual por parte de alguém que não é seu companheiro, e onde 20% das mulheres informam terem sido vítimas de abuso sexual quando eram crianças. As mulheres jovens entre 15 e 19 anos de idade são as mais expostas ao risco de violência física ou sexual por parte do seu companheiro, e muitas delas indicam que sua primeira experiência sexual foi um ato que não buscaram ou que lhes foi imposto. 
Essa violência não só provoca lesões ou inclusive a morte, mas que ademais tem uma repercussão pouco reconhecida na saúde reprodutiva das mulheres, que se traduz em mais complicações na gravidez, assim como em gravidezes não desejadas, abortos espontâneos e infecções de transmissão sexual (ITS), incluído o HIV. Em alguns países das Américas, os níveis de gravidez não desejada são duas a três vezes maiores nas mulheres que informam terem sofrido violência nas mãos do seu companheiro, que naquelas que não passaram por isso. A perda de gravidezes é duas vezes maior nas mulheres que informam terem sido vítimas de violência, tanto que o risco de parto prematuro é 1,6 vezes superior.

Há estudos nos quais também se constata que a violência é uma causa importante de mortalidade materna. A violência infligida pelo companheiro foi a causa principal de morte materna — responsável por 20% dessas mortes — em três cidades dos Estados Unidos entre 1993 e 1998. Por sua vez, se comprovou que as hemorragias foram três vezes mais comuns nas grávidas vítimas de atos de violência em uma província do Canadá, em 2003. Entre 3% e 44% das grávidas na América Latina e Caribe informam terem sofrido atos de violência por parte do seu companheiro durante a gravidez. 

O papel do setor da saúde 

O papel do setor da saúde inclui entre outras cosas a coleta de dados sobre a prevalência de violência, que possam ser utilizados como insumo para a elaboração de políticas e a programação, e ao mesmo tempo capacitar seus trabalhadores a fim de que possam prestar uma atenção integral, sem emitir juízo algum para as sobreviventes da violência doméstica. Os trabalhadores da saúde deveriam de garantir às sobreviventes os serviços jurídicos e de apoio social. As estratégias de saúde pública deveriam incluir atividades dirigidas a mudar as normas sociais e os comportamentos vinculados à violência. 
Ademais, no caso das mulheres vítimas de agressão sexual, os serviços de saúde deveriam avaliar sua necessidade de profilaxia contra o HIV ou as ITS, colocar à sua disposição meios anticonceptivos de emergência, oferecer abortos sem risco de conformidade com as leis nacionais (nos casos em que uma mulher chega aos serviços de saúde, quando já é demasiado tarde para a anticoncepção de emergência ou se esta fracassou) e proporcionar apoio em saúde mental.


Disponível em: www.adital.com.br